Simpatizando com Milan Kundera (Cândida Monte)

A insustentável leveza do ser - Milan Kundera
Parte 4 (A ALMA E O CORPO) - Capítulo 6.

"Foi se vestir. Estava diante de um grande espelho. Não, seu corpo nada tinha de monstruoso. Ela não tinha sacos debaixo dos ombros, mas seios pequenos. Sua mãe caçoava dela porque não eram grandes como deviam ser, o que lhe dava complexos dos quais só Tomas acabara por libertá-la. Agora podia aceitar o tamanho deles, mas lamentava as aréolas muito grandes e muito escuras em torno dos mamilos. Se tivesse feito um projeto de seu corpo, teria mamilos discretos, delicados, que se destacassem levemente da curva do seio e de uma cor que mal se diferençasse do resto de sua pele. Esse grande alvo vermelho-escuro parecia ter sido obra de um pintor popular qualquer que pintasse imagens obscenas para os pobres.

Examinava-se e imaginava o que aconteceria se seu nariz crescesse um milímetro por dia. No fim de quanto tempo seu rosto se tornaria irreconhecível? E se cada parte de seu corpo começasse a crescer e a diminuir a ponto de fazê-la perder toda semelhança com Tereza? Seria ainda ela mesma? Existiria ainda uma Tereza?

Certamente. Mesmo supondo-se que Tereza não parecesse mais nada com Tereza, por dentro sua alma continuaria a ser a mesma, e não poderia senão observar, com pavor, o que aconteceria com seu corpo. Então qual a relação entre Tereza e seu corpo? Teria seu corpo direito de chamar-se Tereza? Se não tinha, o que significava este nome? Apenas uma coisa incorpórea, in tangível?

(São sempre as mesmas perguntas que desde a infância passam pela cabeça de Tereza. As perguntas realmente sérias são aquelas e somente aquelas que uma criança pode formular. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não existe resposta. Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência.)

Tereza está imóvel, enfeitiçada diante do espelho, e olha seu corpo como se ele lhe fosse estranho; estranho, mesmo que no cadastro dos corpos ele lhe pertença. Dava-lhe náuseas. Não teve a força de tornar-se, para Tomas, o único corpo de sua vida. Ela foi enganada por esse corpo. Durante uma noite inteira sentiu nos cabelos do marido o cheiro íntimo de outra mulher!

Subitamente, tem vontade de despedir esse corpo como quem despede uma empregada. Tem vontade de ser para Tomas apenas uma alma, de expulsar para longe esse corpo, para que se comporte como os outros corpos femininos se comportam com os corpos masculinos! Já que seu corpo não soubera substituir todos os outros corpos para Tomas, e que ele perdera a maior batalha de sua vida, pois bem! Que fosse embora!"

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