FRAGMENTOS DE UM PROCESSO SIMPÁTICO 1

TEORIAS DAS REPRESENTAÇÕES E APRESENTAÇÕES DOS EUS
Por Dayana Zdebsky (Interlocutora)

-> O corpo vibrátil é sensível ao outro. Só existe um eu se existe um outro.
-> Descoberta do outro e o que o outro esconde.
-> Por que a sensualidade pode ser ruim? Qual é o problema de reconhecer a estrutura e manipulá-la.
-> A sensualidade está ligada ao tido como socialmente imperfeito. (?)
-> Que informações estão visíveis em nossos corpos? Qual é a relação de cada uma com isso? Como tais informações podem ser (e são) manipuladas?


SOBRE AS “AMARRAS SOCIAIS”

Algumas observações chaves da conversa com Cândida Monte:
Para a Cândida o projeto SIMPATIA FULL TIME não tem como centro a discussão de gênero. Aliás, em suas primeiras versões, o projeto de pesquisa do SFT havia uma pegada mais POP: aulas de canto ao invés de aulas de respiração, aulas de consciência rítmica/instrumentos e o uso do hip-hop como consciência corporal. As discussões eram do que Cândida chama de amarras sociais e não “simplesmente de gênero”. Um exemplo de amarra social explicitado por Cândida vem de algo como uma certa “pressão social”/ o “esperado”. Acho que o melhor termo aqui seja “convenção social”. É esperado que uma mulher como ela forme um núcleo familiar, por exemplo.
Acho que a idéia de uma estrutura internalizada pode dialogar com isso que a Cândida está chamando de “amarras sociais“. Embora em muitos sentidos a abordagem estruturalista seja restrita, a de Giddens é bem flexível e pode nos fornecer alguns termos para diálogo. Só chamo a atenção para o fato de que intencionalidade me parece uma das chaves da arte contemporânea. E intencionalidade chama o consciente e não apenas o inconsciente. A arte contém sempre, como afirma Bakthin, “um cálculo do lugar olhado da coisa” . E ela é um meio de expressão, e enquanto tal, precisa ser posta no mundo, ser “exteriorizada”.

A estrutura é constituída pela atividade humana e é ao mesmo tempo meio desta constituição. Diferentemente da tradição que concebe a estrutura basicamente como sistema de constrangimento ou de coerção, Giddens ressalta, o caráter dual das estruturas na configuração da ação: constrangimento/limitação e habilitação/possibilidade (Giddens, 1989: 133). A partir desta dualidade propõe a integração ação-estrutura. O problema da relação entre o condicionamento dos agentes pelo sistema social e a transformação do mesmo pela atividade dos agentes, adquire um significado diferente ao ser colocado termos de dualidade e não como um dilema dualista. Pois, admite que nem em termos causais, nem em um sentido metodológico, a estrutura alcança da primazia sobre a ação, nem a ação e o sentido adquirem primado sobre a estrutura. A ênfase unilateral em algum destes aspectos conduziria ao objetivismo ou ao subjetivismo . A ruptura da polaridade pretende abarcar a complexidade dos processos sociais. A estruturação como processo ordenador inclui tanto os elementos da ação (motivação, intencionalidade, racionalidade), como os fatores associados aos sistemas sociais. A dualidade da estrutura caracteriza-se pela coerção e facilitação da ação e também pela imposição de regras e disponibilidades de recursos, bem como pela recursividade das práticas sociais. Estes componentes da estrutura se manifestam na concreta presença de normas, poder e significados. Ou seja, o aspecto habilitador e seu reconhecimento não implicam desconhecer os efeitos constritivos, dado que o conceito de estrutura remete às regras e recursos implícitos na produção e reprodução dos sistemas sociais. (GIDDENS, 1979, pp. 76-81).
A configuração das modalidades que adquire a reprodução das estruturas e os meios, através dos quais se concretizam, está em função das relações de poder, a moralidade e a criação de significado, considerados como aspectos básicos da interação.Os sistemas sociais apresentam propriedades estruturais que organizam recursivamente as práticas sociais. Neste sentido, as regras e os recursos que entram em contato com as instituições são os aspectos mais importantes da estrutura. [...] A estrutura refere aos aspectos mais duradouros dos sistemas sociais e remete a um conjunto de interações e princípios organizativos que “só existem desde que haja continuidade em uma reprodução social por um tempo e um espaço”. [...]
As estruturas são definidas como sistemas de regras e recursos (GIDDENS, 1989:19). As estruturas sociais, de acordo com este conceito, são configuradas pela conduta dos atores, uma vez que representam o meio desta configuração. Segundo este argumento, a caracterização das estruturas está ligada à noção de regra, pois se admite que legitimação, significação e dominação são propriedades das mesmas. Sendo que as estruturas de legitimação podem ser analisadas como sistemas de regras morais, e as de significação e dominação, como sistemas de regras semânticas e de recursos, respectivamente.
Não há então, agentes cuja configuração seja independente da estrutura; isto é, não há mais agentes do que os constituídos no processo de estruturação da dualidade da estrutura. Não existem estruturas dadas, preexistentes e alheias à atividade dos atores, como tampouco existe uma ação subjetiva, inteligível unilateralmente. Ao se postular essa dualidade, se sustenta à idéia de que estrutura e ação estão inscritas em processos de estruturação e não submetidas a dinâmicas causais excludentes. Assim qualquer referência ao sistema social que não contemple as ações dos atores, resulta tão insuficiente como a consideração das atividades humanas, sem considerar sua conexão com o sistema social. Como não se pode atribuir aos atores a criação dos sistemas sociais, estes não podem ser concebidos sem a existência atividade humana. Esta os transforma e reproduz mediante a continuidade da própria práxis.Indagar sobre a estruturação das práticas sociais é explicar como são constituídas as estruturas mediante a ação e de modo recíproco, como a ação é constituída estruturalmente.
A estruturação, enquanto reprodução de práticas, da conta do processo dinâmico através do qual as estruturas se configuram. O conceito de dualidade da estrutura procura explicar a mediação, que no processo de reprodução social se estabelece entre estrutura e interação. A estruturas são integradas por meio da ação e a ação se conforma estruturalmente. A constituição da sociedade, sua produção e reprodução são uma criação dos atores sociais. Neste sentido, se enfatiza o caráter recursivo das atividades humanas consideradas práticas sociais, situadas no espaço e no tempo. Os atores e as ações que empreendem, geram uma contínua recriação e reprodução dos contextos sociais que possibilitam suas ações. (GIDDENS, 1979: 64) Desta forma esta concepção avança no reconhecimento dos traços inteligente e cognoscível da intervenção dos atores nas práticas sociais. Assim, o agente é entendido como um ser cognoscente e intencionado que monitora reflexivamente suas ações. Ou seja, o ser humano é capaz de desenvolver uma atividade intencionada, possuindo não só alguma compreensão do que faz, mas também das razões por que faz. A razão não se explica como autoconsciência, mas em termos do monitoramento reflexivo da ação. Este é concebido como um processo associado apo desempenho dos agentes competentes.
A racionalização da ação é entendida como uma característica da conduta humana ligada à intencionalidade. Assim, a racionalização e o monitoramento reflexivo da ação respondem a motivações. A agência por sua vez se desenvolve como um fluxo de ação intencional, referida ao que se faz como parte da atividade cotidiana navida diária. Entretanto, Giddens adverte que seria incorreto considerar como agência os atos conscientes dirigidos a um fim. A agência é definida como capacidade do ator realizar ações e não com a intenção (GIDDENS, 1979: p. 54). O distintivo de agência não é a finalidade expressa, mas a capacidade de intervir causalmente “em uma cadeia de acontecimentos”. Os efeitos dos atos humanos, empreendidos com intenção ou sem ela, são sucessos que não teriam ocorrido se o comportamento seguido fosse outro. “Ação implica a possibilidade de poder atuar de outra maneira e, portanto, um poder. Considerando poder como a “capacidade que o ator tem de intervir no curso dos acontecimentos e alterá-los. (GIDDENS, 1984: 10) E em razão dessa qualidade da agência humana, as estruturas adquirem duplo significado: não são algo que deve entender em um sentido supraindividual e exterior ao sujeito, mas como algo interior e subjacente a ele. (Idem: 21) É necessário acrescentar que as ações humanas são surpreendidas por conseqüências não previstas. Isto se explica, ao menos em parte, pelo fato de que o conhecimento dos atores acerca das circunstâncias da ação e de suas possíveis repercussões sempre é limitado ao grau desigualdade de seu poder para incidir sobre essas circunstâncias.”

CARNEIRO, Cristina Maria Quintão, 2006. “Estrutura e ação: aproximações entre Giddens e Bourdieu”. In. Revista Tempo da Ciência http://e-revista.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/download/1544/1260.


Cândida me falou de algumas de suas inseguranças, de dificuldades de relações como coisas talvez decorrentes dessas amarras. Parece que, se quisermos, podemos associar atitudes assim como as noivinhas da Sueli Rolnik. Mas me pergunto: para quê?
Um caminho possível para se pensar isso imageticamente, esteticamente, talvez seja um rápido estudo de fotos das simpáticas de adolescência. Comentando que as pessoas diziam que ela parecia a Ana Paula Arósio, Cândida afirmou ter pensado que podia ser modelo. Daí fez inscrições para concursos de beleza, produção de fotos para ser capa de revistas (como a Capricho)... Lembrei que eu também tinha este desejo e que sempre produzia fotos me achando linda (tipo modelo), mesmo pançuda e de pernas finas e com os olhos mais escuros que imaginava.
Todas essas questões são brigas, segundo a Cândida, com ela e não com a sociedade. Inclusive ela pensa esse seu não “envelhecimento”, “não parecer 30 anos” como uma tentativa de fuga das “amarras”.
Nossas experiências, vivências, construções individuais são, inevitavelmente, bases para processos artísticos. Mas para algo virar arte, precisa ser posto no mundo. É preciso criar um “produto” a partir da deflagração de nossas subjetividades. Acredito que uma pesquisa em arte está necessariamente ligada ao experimentar diferentes possibilidades de exteriorização, de construções poéticas. Penso que meu papel crítico como antropóloga é justamente ajudar a pensar o que for construído poeticamente, o movimento entre artista – produção – sociedade.
Outra coisa. Se para todas o SFT tem como base a vida pessoal e “todas as esferas da vida” das artistas, se estas são sua matéria-prima, em que medida é possível produzir algo controlando o acesso do grupo à informações “pessoais”? É possível se colocar ao mesmo tempo dentro e fora do processo? Nâo sei responder. Mas me parece que feridas pessoais causadas em diferentes movimentos de construções de representações e apresentações possíveis e esperadas socialmente são o “X” da questão. Como diria Sueli Rolnik, as micropolíticas, nossa fractalidade, nossos (autos) retratos. Como será feito? Cada uma apresenta ao grupo o que interessa e da soma de parcialidades será construído algo? Serão feitos trabalhos individuais (afinal cada um tem sua verdade e informações só suas) e depois bricolamos tudo? O projeto será feito de jogos entre interesses pessoais ou da intersecção destes com interesses coletivos?
Aparentemente o projeto (como todos) está por enquanto em um campo tenso de disputas: de interesses, de autoria, de poderes. Me pergunto que tensão é esta, se há solução, se ela é “criativa” ou “destrutiva”. Mas talvez destruições não estejam sendo aceitas. Não se aposta no drama de Fausto: para construir é preciso destruir e o que está sendo construído já está fadado a destruição para uma próxima construção. Talvez os dramas pessoais estejam sendo “levados a sério” demais. Ou perde-se tempo colocando limites ao olhar alheio, em aceitar o outro e o seu olhar invasor apenas até um determinado ponto. Têm-se medo da imagem que o outro pode fazer de si ou de se descobrir uma outra coisa do que se acredita ser? Exigimos nossos limites como limite do outro. Muitos julgamentos. O foco no outro traz o foco dele para si.
A arte não parte apenas do corpo do artista, mas deste corpo no mundo. Um corpo sensível, sensibilizado, deflagrador. Minha pergunta é se tantas aulas de construção do nosso corpo, sensibilização dele e coisa e tal são instrumentos eficientes de pesquisa sem colocar esse corpo artisticamente em choque com os outros. Como isso se relaciona com as construções corporais contemporâneas? Como dor e sacrifício se relacionam a ambas construções corporais. Quais (e como) construções corporais de cada uma relacionados a padrões de beleza se relacionam com as construções de um corpo cênico expressivo?
- Para a criar é preciso sair do espaço de conforto.
- As outras pessoas precisam fazer parte das políticas de exteriorização do eu de maneira deflagradora e não como figuras de censura.

O BURACO NEGRO DA MINHA BARRIGA

Uma das questões centrais da Stéphany está relacionada a sua gravidez e a um certo “lugar social” diferenciado que esta a coloca enquanto pessoa. “As pessoas me enxergam como uma santa”, “se relacionam com a minha barriga e não comigo”. “Minha vontade é dançar com um pinto no cu e outro na buceta”. Bem... Isso tudo parece vontade de quebrar a “nova” imagem “imposta” a Sté por sua barriga. “Imposta ou construída?” Em que medida Sté é responsável por esta imagem? Em que medida se posiciona e é de fato vítima desta imagem?

“Estratégia de produção de desejo gera estratégias de constituição de formas de expressão, logo estratégia de criação de mundo e não de nova espécie de mundo”. (Stéphany)

Sugiro: “Estratégias de produção de desejos geram estratégias de constituição de formas de expressão ao mesmo tempo em que são geradas por estas e assim criam-se ou mantém-se mundos”.
Conversando com a Sté sobre possibilidades de exteriorização dos desconfortos relacionados às imagens de sua gravidez e suas atuais experiências, na violência dessas coisas para ela, na busca em se ser o que se é para além disso, chegamos em algumas maneiras possíveis de utilizar tudo isto performaticamente a nosso favor. A idéia é basicamente associar ao corpo da 'performer' frases de leitura rápida, quase slogans, que transformem a “leitura senso-comum” da gravidez. Por exemplo: “meu pai é presidiário”, “eu não outra tenho casa” e por aí vai. [Acabamos de pensar na propaganda da Benetton do HIV]. Outra possibilidade é associar uma narrativa do parto, com toda sua violência e beleza, ao corpo “fofo” de nossa dançarina, quem sabe com uma dança quase infantil.
Stéphany: “O Solução para mim é violento, as pessoas acham engraçado, mas ele é violento. A cena da caixa é a coisa mais claustrofóbica para mim.”
Enfim, talvez as cenas de violência precisem ser mais explícitas agora. Proporcionar outras coisas que não apenas o riso do “outro público”.
Conversamos também sobre o que levou Sté a ter vontade de fazer este projeto e de suas escolhas nele. Questões relacionados a padrões e corpos sempre estiveram presentes (como para todas nós). A mãe da Sté, “sofredora”, construiu um corpo obeso e com ele sofre. Em que medida este é um projeto terapêutico para Stéphany também?
Se é para fazer terapia, vamos fazer psico-dança-performance?
Se eu fosse dizer que a Cândida “tende” a andar em territórios, eu também diria que Stéphany é pura desterritorialização. E quem sabe a Giorgia talvez fizesse a ponte entre as duas. Se a Sté é a criança que com os últimos 4 euros vai comprar “balas de dentadura”, a Cândida é aquela que vai optar pelo “prato balanceado”. Se a Stéphany gosta de se “enroscar nos outros”, a Cândida é o não me toque. Se Cândida se pré-posiciona nunca sabemos qual é a posição da Sté. Se Cândida espera ansiosa chegar à algum lugar com o processo, a Sté é um processo sem fim, maleável a tal ponto que escorre. Mas a bichinha em cena demarca muito bem territórios. E sem territórios minimamente demarcados, pelo que eu entendi do nosso livro base, talvez a comunicação não seja possível no sentido do “outro” nos apreender. Se não nos territorializamos para ele, ele procurará um território para nós, mesmo que momentâneo. Talvez deixar o outro se virar para nos territorializar e jogar com a nossa imagem seja uma forma de se obter poder, de manipular, etc... OBS: comunicação é manipulação e relações sempre contém jogos de poder. E isto não é necessariamente pejorativo.

SE ELAS DANÇAM, EU DANÇO?

Giorgia começou nossa conversa com a seguinte citação de seu caderninho: “Estamos usando umas às outras como objetos de pesquisa e de experiência (já que estamos focando para nossa salinha). Isso gera um desgaste. Precisamos ir para fora.“ Já falei muito sobre isto.
A questão do momento é, para ela, se ver aos olhos dos outros como uma ET. A Stéphany tem lá sua formação na Casa Hoffmann, a Cândida tem toda sua história com a dança de rua e com a dança contemporânea. Cândida comentou certo dia que para ela, dentro do SFT, o raciocínio da Giorgia era algo próximo ao ”raciocínio de teatro” e que no SFT ela (Cândida) procurava uma “dança que parte do corpo e não de um raciocíonio externo”. Isto porque andava produzindo muito dança “de fora”, com um olhar sobre o corpo dos outros.
Quero tentar desenvolver um raciocínio sobre isto. Bem, primeiro que se a dança parte do corpo, ela não parte de um corpo “0”, “neutro”. Ao menos eu não acredito nisto. Até porque se ele existir deve ser em relação à alguma coisa que o extrapola, e, se está em relação, não é “0”. Vou me citar em meu primeiro artigo, de 2003. Acho que ele tem um pouco haver com isso tudo...

O objetivo deste texto é refletir sobre questões relativas à subjetividade e ao olhar na construção e na recepção das ações artísticas apresentadas na Casa Hoffmann.
[...]
Se “desvestir-se em público exige a coragem de expor seu aspecto físico no que ele tem de mais íntimo, desprotegido, ostentando a fragilidade do próprio corpo”, maior ainda parece ser a coragem necessária para os artistas exporem suas subjetividades [...]
Nossa subjetividade está presente em tudo que fazemos; no nosso olhar e em todos os músculos que movemos. É formada pelas experiências coletivas e pessoais. Ao mesmo tempo em que construímos a cultura, somos construídos por ela, numa constante dialética entre indivíduo e sociedade. Compartilhamos redes de significados (referências, linguagens, códigos específicos), porém ocupamos lugares diferentes nessas redes, o que nos singulariza, leva-nos a experiências específicas e a sermos diferentes uns dos outros, a diferentes perspectivas, visões de mundo ainda que façamos parte de uma mesma cultura. Conseqüentemente, estamos negociando significados sociais, sempre em transformação.
O olhar é, ao mesmo tempo, interpretação, significação e seleção. É construído socialmente e constrói diferentes realidades, inclusive realidades virtuais, não só em diferentes espaços físicos, mas também dentro de um mesmo espaço. Se compartilharmos perspectivas, também nos singularizamos através delas: “(...) não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (o pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento.” (Viveiros de Castro 2002, 123)
O vidente está no visível.
Não vemos as coisas como elas são em si, mas como são para nós. O olhar reconhece, seleciona, agrega valor, classifica, hierarquiza. Ele é uma relação entre o que nos é interior e o que é exterior. Em um certo sentido, o mundo é, para cada um de nós, o que vemos, o que nos é consciente, embora saibamos que existem milhares de outras coisas que para nós permanecem invisíveis. Nosso olhar se modifica o tempo todo e, conseqüentemente modificam-se as maneiras de agir sobre o mundo e, esse agir, modifica nosso olhar. O olhar é, nesse sentido, ação.
O artista ocupa uma posição liminar diante do seu eu e do mundo. Existe um contínuo jogo de envolvimento e distanciamento do performer de si mesmo e do que o cerca. Isso torna-o, de certo modo, autoconsciente a ponto de se manipular para produzir um trabalho em que é, ao mesmo tempo, matéria prima e sujeito de sua arte. Agir, criar performances é um ato pessoal que depende da relação do performer com o mundo, até porque o eu não existe sem os outros.
Há uma relação com o tempo interno da experiência, um tempo subjetivo próprio de cada performance [e performer], que assume um valor intrínseco e vai dar singularidade a essas manifestações artísticas, permitindo diferenciá-las de outras [manifestações e entre si] (...) O performer é seu próprio programa, seu próprio cronômetro e sua própria pulsação da ação (...) Todavia este ser é plural, circunstancial, [cultural] e histórico. (GLUSBERG, 2003, p. 67, 110 e 111)
As imagens são polissêmicas e signos de recepção por excelência (Samain 2001). Os trabalhos performáticos não são imagens estáticas, mas conjuntos de imagens seqüenciadas, ações, e fundem-se a elas, a critério do criador, sons, cheiros, gostos, palavras, além de outras. O conjunto de signos das performances formam uma espécie de texto, que não possui necessariamente uma composição linear, podendo, por ser uma obra aberta, interpretada de inúmeras maneiras, dependendo, por exemplo, das experiências subjetivas e coletivas de cada leitor.
Nos trabalhos apresentados na Casa Hoffmann, e em todas as performances, foram inúmeras as informações disponíveis ao público, principalmente nos eventos em que existem vários trabalhos acontecendo simultaneamente. Houve, necessariamente escolhas de foco, seleções de imagens feitas pelo olhar de cada observador dessas ações. A performance não é apenas uma relação entre o que se mostra ou não, mas também entre o que escolhemos ver ou não. Para cada coisa que escolhemos ver, permanecem inúmeras outras, para nós, invisíveis. Assim, a percepção e a leitura das ações estéticas serão diferentes para cada integrante do público. Há uma negociação de significados entre o que me é mostrado pelo outro e o que eu vejo, que implicará em diferentes interpretações de uma mesma ação. Essa negociação entre público e artista da vez aumenta, e muito, a indeterminação, o incerto já inerentes às performances.
[...] Os performáticos, em geral, como outros tipos de artistas trabalham utilizando experiências e questões subjetivas como elementos fundantes de suas ações.
[...]
Ao mesmo tempo, também não foram poucas as afirmações como: “a questão não é saber o que moveu, o que levou fulano a fazer tal ação, mas sim a ação, o que resultou dessa motivação”. Parecia haver um consenso por parte dos envolvidos nos bate-papos de que o que importa numa performance, é como a ação é executada, o que é exposto ao público, já que este só pode ver o que é mostrado: “Seria absurdo pretender encontrar qualquer conteúdo semântico idêntico a si mesmo na multiformidade e no aparente caos perceptual da performance, onde os elementos mais dissimulantes e contrastantes são combinados de uma forma harmoniosa, que vai depender do arranjo sígnico, da composição dos significantes.” (GLUSBERG, 2003, p.82)
O texto da performance não é um simples agregado de significantes, já que são manipulados, transformados, reconstruídos pelo performer. São significados negociados pela poética, pela forma como o conteúdo semântico é exposto e pela maneira com que são observados. A performance não é apenas a ação em si; é, também, o olhar sobre essa ação. A performance acontece intersubjetivamente.
Ao olharmos para nós mesmos, reconhecemo-nos, compreendemo-nos; reconhecemos e compreendemos nossa arte, identificamo-nos com o outro e dele nos diferenciamos, identificamos nossa arte com a do outro e as diferenciamos. É nesse jogo, nessa negociação de significados que reside a capacidade reflexiva dos bate-papos, reflexividade que está presente, em maior ou menor grau, em toda ação estética (Turner 1982), em toda ação comunicativa:
Uma vez que vemos outros videntes, não temos apenas diante de nós o olhar sem pupila, espelho sem estanho das coisas, este pálido reflexo, fantasma de nós mesmos, que eles evocam ao designar um lugar dentre elas de onde vemos: doravante somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças aos outros. Essa lacuna onde se encontram nossos olhos, nosso dorso, é de fato preenchida, mas preenchida por um visível de que não somos titulares; por certo, para acreditarmos numa visão que não é nossa, para levarmos em conta, é sempre, inevitável e unicamente, ao tesouro da nossa visão que recorremos e, portanto, tudo o quanto a experiência nos pode ensinar já está, nela, previamente esboçado. Mas é próprio do visível (...) ser a superfície de uma profundidade inesgotável: é o que torna possível sua abertura e outras visões além da minha. (MERLEAU-PONTY, 2001, p.139)

CORDOVA, Dayana Zdebsky (2003). “Não há corpo sem óculos”. In Relâche n. 1. http://www.fccdigital.com.br/relache/05_edicoes/ed01_artigos/05_ed01_artigos_dayana01.htm

Talvez esses fragmentos nos ajudem a encontrar termos comuns para pensarmos a arte contemporânea em suas inúmeras expressões, em nosso caso, na “dança contemporânea”. Uma particularidade da arte contemporânea seja ela dança, música, performance, artes visuais ou qualquer outra coisa (se é que faz sentido pensarmos tais “enquadramentos” na arte contemporânea – eu acho que não), tal vez seja justamente o fato de que cada trabalho (ou grupo de trabalhos) de cada artista (ou grupo de artista) pode ter uma metodologia de construção diferente, uma estratégia de construção diferente dos demais trabalhos contemporâneos.
Bem, na dúvida de se eu fui ou não convincente me citando, vou citar os outros. E para colocar mais lenha na fogueira: não citarei alguém de dança ou legitimado neste campo e nem algum texto escrito nas últimas três décadas.

Manifesto:

contra as categorias de arte contra os salões
contra as premiações contra os júris
contra a crítica de arte
Fevereiro de 1970 — Rio de Janeiro


[...]

DAS FORMAS DE ATUAÇÃO
Desde os primeiros trabalhos usados como meios transformadores de espaços sacralizados, fechados a um tipo de comportamento/atuação, no caso museus e galerias, a interferência dos trabalhos/atuação provoca automaticamente a transformação do meio ambiente, dessacralizando-o, daí o sentido da atuação em função do inesperado.
[...]
Dos aspectos internos — Salão da Bússola, MAM, Rio de Janeiro 1969 --— aos externos: atuação em ruas, praças etc (69, 70, 71 etc.), ao envio de materiais, trabalhos ou registros pelo correio, das exposições-relâmpago, fazendo uso de locais tais como um terreno baldio, uma galeria ou mesmo um museu: tudo isso em função de uma atuação não estática, mas em sentido dinâmico, não repetitivo; desorganizadora; confundindo conscientemente conceitos preestabelecidos; numa atuação direta sem meios-termos.
1969/1970/1973...
[...]
Meu trabalho está ligado a uma situação subjetiva/ objetiva —:—mente/corpo.---——, considero esta relação uma coisa só, pois é ela que inicia o processo energético que irá deflagrar situações psicorgânicas de envolvimento do espectador. levando-o a uma maior participação em relação à proposta apresen¬tada. seja em seus aspectos táteis, olfativos, gustativos, visuais, auditivos, seja em suas implicações de prazer ou repulsa. Chego mesmo a encarar as implicações psicoemocionais orgânicas, tais como vômito, diarréia, etc como participantes. isto é, diante de fatores deflagradores (provocadores) que agem em função do inesperado, fragmentando o cotidiano.
No meu trabalho, a função do processo criativo não se prende mais a uma situação interna, ou seja: o ateliê (ou oficina), como início e fim do processo de criação. A idéia pode germinar em qualquer local, no banheiro inclusive, considerado portanto como local de trabalho.
[...]
Em meu trabalho, encaro o registro através do filme ou foto etc simplesmente como o processo informativo de uma idéia. Reneguei as categorias em arte em função de uma maior abertura e conseqüente possibilidade de ação inclusive a denominação obra de arte: envolta em pompa bastante duvidosa. Refiro-me ao que faço, apenas como trabalhos. A cidade, substituindo o papel, tela etc. da mesma forma o país ou o continente: política ou geograficamente:
ou o próprio planeta em relação ao cosmos.
1970
TRABALHO :1970 ARTE
O registro de meus trabalhos através de fofos, filmes etc, é encarado apenas pelo sentido de informação divulgação do mesmo, sendo que nunca em sua totalidade, já que fotos etc nunca registram todos os aspectos de uma pesquisa, pois algumas dessas pesquisas estendem-se por semanas, meses etc. Portanto, re¬nego em função de meu trabalho o enquadramento da foto etc como situação de obra de arte ou suporte em função do mesmo, pois que, independentemente dos recursos de registro, o trabalho é levado a efeito, desligando-o ou não desse cordão informativo a meu bel-prazer..
...................................................................................................................................................................................................................................………………..OU NÃO…………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………maio/junho/ 970....................................

O ARTISTA PLÁSTICO
DIVULGAÇÃO DO TRABALHO
MERCADO DE ARTE
O artista plástico: não vejo a necessidade do uso deste rótulo como meio de identificação profissional ou especialização, pois o processo de trabalho não está condicionado unicamente a um tipo de linguagem/suporte/atuação, portanto o rótulo clássico, denominado artista plástico, vejo-o fora de época, mais de acordo com um tipo de mentalidade belas-artes. O ponto principal da questão é a forma de atuação em termos de linguagem descompromissada eletricamente a sistemas que condicionam sua situação de liberdade/atuação, uma forma de sobreviver de seu trabalho sem se condicionar pela chantagem sobrevivência ou status social, e que esse tipo de chantagem existe, existe, é claro, pois o artista plástico paga para mostrar seu trabalho em vez de ser pago para isso, no caso em função da maior parte das galerias de arte.
O importante é o descompromisso com ismos e sis¬temas. Se essa forma de pensamento leva a um marginalismo em que a partir dele se passa a ser um de¬flagrador, é uma realidade, mas em compensação a liberdade de ação também o é. Além do que, contesta-se o problema de o artista plástico continuar eter¬namente fazendo os mesmos temas sem se dar conta de sua pobreza e pondo seus méritos em problemas de técnica, e, é claro, de acordo com a crítica de arte e o mercado que sempre fizeram questão da “qualidade” técnica em detrimento da criação.
Está na cara que para manter uma maior liberdade de ação há que trabalhar em equipe, não no sentido arcaico, isto é, sob a liderança de uma cúpula autoritária ou paternal, mas sim tendo como base a cons¬ciência individual e coletiva de cada componente, anulando, portanto a situação líder.
Não numa linguagem que se diz coletiva em termos de condicionamento criativo em torno de uma representação temática, mas sim uma linguagem comum que não se condicione a um único tipo de imagem representativa. As realidades são várias e vastas, O importante no trabalho de equipe é a ação, ação em ter¬mos de como ou de que maneira atuar para um grande ou pequeno público, se realmente a estrutura do trabalho está desligada de um aspecto de participação de massas ou não, porque realmente o suporte, no caso foto, filme etc, desde o momento em que é impresso/publicado, descondiciona/anula uma mentalidade, uma linguagem limitada, em favor da produção em massa (deflagramentos), fazendo com isso que de¬terminado mercado entre em crise. Está claro que para se atingir esses objetivos é e será necessário manter os preços e a margem de lucros em função de um poder aquisitivo baixo. Esse critério fica de acordo com a consciência de cada um em termos da realidade sócio-econômica do local onde vive.

EM RELAÇÃO AOS ASPECTOS: RÔTULOS/ESCOLAS
E POSSIBILIDADES.
Materiais precários, momentâneos, estão ligados a criatividade imediata, ao uso/transformação do que se tem à mão, um não á impossibilidade de aquisição de materiais, um não á neurose das dificuldades impostas por um mercado ou pensamento estético ligado ao que comumente costumam chamar de O 8CM GOSTO ou MAU GOSTO.
O uso de materiais precários/momentâneos, em meu trabalho, NÃO é moda, NÃO pode ser enquadrado numa época, NÃO tem nada em comum com Arte Pobre, que é escola, corrente esteticista. O gosto Imaul de rotular, herdado diretamente da empoeirada e velha arte acadêmica, mas tão ao gosto dos movimentos de arte do século XX, DADA inclusive, é claro, continua tendo numerosos adeptos, tanto entre a Vanguarda, como entre a Retaguarda, isso sem esquecer a famigerada critica de arte, cujo gosto por descoberta/rotulação de movimentos, apadrinhamentos etc é notória.
No fundo, a RetaguardaVanguardaCritica, está intimamente ligada ao processo da boa organização histórica, da boa conduta, do abrir da gaveta e encontrar o X do problema, o pensamento/ação desligado do risco, aliás como em qualquer escritório, cada coisa em seu lugar, tudo certinho, arrumadinho, tudo no figurino, com ou sem sutilezas, com ou sem estratégias de araque. ARAQUE...
DA POSSIBILIDADE de um trabalho AVENTURA
da POSSIBILIDADE de um trabalho RISCO
da POSSIBILIDADE de um trabalho em transformação
CONSTANTE
da POSSIBILIDADE de um trabalho em EVOLUÇÃO

Contestar o presente não quer dizer voltar ao passado, quer dizer:
IR MAIS à FRENTE
1975

A CRÍTICA DE ARTE
NÃO
TEM O SABER

A Crítica de Arte, critica, mas geralmente não gosta de ser criticada.
A Crítica de Arte chegou á sua atual posição devido em parte às concessões feitas pelos artistas em pre¬juízo de seus próprios trabalhos teóricos e em favor do trabalho teórico do critico.
Desde o momento em que a Critica de Arte passa a cobrar ao artista para apresentá-lo, o público passa a ser a vítima.
Ultimamente passaram a proliferar os Críticos Artistas. Com esse ato fica claro que a Critica de Arte não tem o saber, pois se o tivesse, não seria necessário metamorfosear-se em artista.
Vez por outra, a Crítica de Arte, de acordo com o mercado e artistas, desenterra velhas fórmulas, geral¬mente ligadas ao suporte Tela, reabilitando-as e relançando-as como a nova vanguarda (Kassel e Bie¬nal de Paris dão apoio, é claro). E também é claro que são aspectos transitórios, pois é notoriamente sabido que a pintura perdeu seu valor de interferência! comunicação em função do investimento, daí: PIN¬TURA TRADIÇÃO INVESTIMENTO
Em meu entender, a única Crítica de Arte válida é a que dialoga com o artista de igual para igual. Geral¬mente essa crítica (que existe), fica marginalizada pelo meio, isto é: mercado, galerias; crítica oficial: panelas e artistas interessados na continuidade do status qua.
1974/ 19 75

[LOPES, Artur Alipio Barrio de Sousa (1978). “Barrio”. Arte Brasileira Contemporânea. Edição Funarte – Rio de Janeiro 1978. Extraído do CD O presente é um ET infinitamente curto.]

O que acontece se substituirmos palavras como performance no primeiro texto citado (o meu), por dança contemporânea? O que acontece se substituirmos no segundo texto termos como ateliês por salas de ensaio, críticos de arte por críticos de dança, salões por editais de incentivo à cultura relativos à dança, artista visual por bailarino, dançarino, intérprete criador ou seja lá qual for o nome oficialmente dado para a pessoa que faz dança contemporânea (aliás, alguém sabe o qual é? – se souber me conta!)? Esses textos servem ou não? Servem!
Aliás, que chato ter que ficar repetindo essas coisas. Que démodé! Mas mesmos assim, se essas questões ainda são vigentes para alguns e geram material para nosso trabalho, ótimo. Aliás, sugiro que o que rolou com o SFT na Fundação seja explicitado no blog.... Dá uma boa discussão, já que “formação em dança” ou DRTs na área são possibilidades para delimitar quem pode fazer dança contemporânea com incentivo público. E mais: é importante pensarmos o que estão querendo nos dizer com isso. E obviamente utilizarmos isso à favor do projeto.
Conversando sobre tudo isso, chegamos a algumas possíveis ações para a exteriorização destes dramas de Giorgia e, portanto, nossos:
- Pesquisa sobre o que é dança: Três televisores, cada um com um vídeo de Giorgia executando um “tipo de dança” (brega, dança moderna e dança contemporânea) expostos na rua. Baseados no vídeo, o público (transeuntes) escolhe (respondendo um pequeno questionário) o tipo de dança de sua preferência.
- Utilizando os movimentos que Giorgia descobriu serem possíveis em seu bumbum graças às aulas do projeto, Giorgia executará uma coreografia. Em uma nádega a logo da FCC, em outra a da FUNARTE.
Outra questão da Giorgia talvez esteja em seu corpo “bastante gordo” e na pergunta que por vezes ela se faz nas aulas de yoga: “Por que estou aqui fazendo algo que não consigo”? Boa pergunta! Por quê? Como podemos utilizar isto? Que tal uma aulinha na frente da Casa Hoffmann com umas três horas de duração (1 de yoga, 1 de preparação corporal à lá “Klein Technique”, mais uma hora de respiração? Que tal aumentar esta ação para 4 horas e incluir uma hora de improvisação. Pode ser algo aberto ao público, ministrado pelas próprias simpáticas com um microfone (aqueles que prendem na cabeça e vem para frente do rosto). Que tal utilizar roupas e cabelos anos 80 daqueles vídeos de ginástica. Em que medida a construção corporal senso-comum-artística não está associada à construção de um “corpo lindo” e perfeito?

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